Ó Abbá, uma grande multidão estava reunida em torno de mim. Tive clara compreensão que ela estava aberta para um ensinamento de minha parte. Por que desejavam que eu lhes ensinasse? O ensinamento dos doutores da Lei não os preenchia nas questões existenciais, familiares e comunitárias?
Comecei o meu ensinamento, Abbá, justamente chamando a atenção sobre a atuação dos doutores da Lei. Tive com toda sinceridade dizer: “Tomai cuidado com os doutores da Lei”. E qual a razão desse cuidado? Infelizmente a razão era esta: “Eles gostam de andar com roupas vistosas” - para eles importa a aparência exterior; “eles gostam de ser cumprimentados nas praças públicas” - eles querem ser reconhecidos a qualquer custo; “eles gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes” - eles querem ser “exemplos” na prática religiosa e no convívio social.
Com esta sua conduta, e isso é o pior, os doutores da Lei “devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações”. Abbá, isso é intolerável! Pois, em nome de uma falsa piedade, acabam ferindo o mandamento maior do amor, cuja expressão máxima é “cuidar das viúvas” segundo nosso entendimento divino. “Devorar as casas das viúvas” já chega a ser o antagônico extremo do ser humano que sonhamos como “ser imagem e semelhança de Deus”. É degradante explorar a vida indefesa - “as viúvas”, e isso ainda, com “longas orações”. Que falsa piedade! Por isso tudo, tive que afirmar, sem meias palavras: “Eles – os doutores da Lei - receberão a condenação, mais, a pior condenação”.
Após o ensinamento à multidão, fui ao Templo. Fiquei sentado diante do cofre das esmolas. Não pude deixar de observar como a multidão das pessoas depositavam suas moedas no cofre. Ó Abbá, era até comovente proceder com esta observação! Na oferta das moedas, cada pessoa expressava sua gratidão a nós, Trindade Santa, por todos os dons que de nós recebem. Lembrei-me de um ensinamento que fiz num outro momento: “De graça recebestes, de graça deveis dar”. A gratuidade aproxima o ser humano de Deus. Quanto maior gratuidade entre a humanidade, mais expressão de nossa total gratuidade trinitária. Gratuidade é sinônimo de sentido maior; interesse é sinônimo de sentido menor.
Na minha observação da oferta de moedas no cofre de esmolas, notei que no meio dos ofertantes muitos ricos depositavam grandes quantias. Esses tinham mais, davam mais. Mas também notei que havia pessoas pobres, que depositavam pequenas quantias. Foi o caso de uma pobre viúva que chegou e aproximou-se do cofre e depositou duas pequenas moedas, únicas que ela tinha e que valiam quase nada.
Então, ó Abbá, eu chamei os discípulos para perto de mim. Queria dar-lhes mais um ensinamento a partir da observação que tinha feito. Eu disse-lhes: “Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”.
Espero que meus discípulos, ó Abbá, tenham entendido o que lhes ensinei. Primeiramente queria concretizar, no gesto da pobre viúva – “ela, na sua pobreza ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” - o que significa a gratuidade. Eu fui enviado por Ti, ó Abbá, na história da humanidade pela nossa total gratuidade. Nós somos a gratuidade plena: nada resta-nos como Pai-Criador; nada resta-nos como Filho-Redentor; nada resta-nos com Espírito Santo-Santificador. A gratuidade - “dar tudo” REALIZA e PLENIFICA!
Em segundo lugar queria mostrar com o gesto da pobre viúva, mas especialmente com o gesto dos demais ofertantes – “os outros todos deram o que tinham de sobra’ - o que não significa a gratuidade. Diante da nossa total gratuidade não há lugar para as “sobras”. Além de não ser agradável esta oferta a nós, também a não-gratuidade não realiza o gênero humano feito “à imagem e semelhança de Deus”. A não-gratuidade - “dar as sobras” NÃO REALIZA e ESVAZIA!
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo de Pelotas
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